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Se hoje a varíola é considerada uma doença erradicada no Brasil e no mundo, a vacinação foi a grande responsável décadas atrás por justamente prevenir a doença. No início do século XX e decorrer do XIX, a situação era bem diferente: houve surtos epidêmicos da doença no Brasil Colônia e uma forte epidemia em 1908, no Rio de Janeiro, o que levou a população da época a buscar a vacina. Quatro anos antes, essa mesma população lutava para não se vacinar, um episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina. As pessoas foram às ruas protestar contra uma lei que estipulava a obrigatoriedade da vacina antivariólica, ideia do médico sanitarista Oswaldo Cruz.

Ainda hoje, em 2018, a Revolta da Vacina é tema de estudo, como a dissertação "A Revolta contra a vacina: a vulgarização científica na grande imprensa no ano de 1904". A jornalista e historiadora Aline Salgado, que acaba de se formar mestre em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde, examinou como a grande imprensa atuou como mediadora da “vulgarização do conhecimento científico”, termo da época, naquele momento tão controverso do debate sanitário e político no Brasil. Aline tentou mostrar que a imprensa atuou como "agente" fundamental da mediação científica para um público mais amplo e que empenhou papel importante para desencadear a Revolta na cidade do Rio. Para isso, ela estudou as edições de dois jornais da época, o Correio da Manhã e a Gazeta de Noticias, publicadas entre 1º de janeiro e 10 de novembro de 1904. O primeiro se posicionou contra o governo e o projeto de lei que impunha a vacina, já o segundo a favor. Com a palavra, a autora do estudo, orientado pela pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz Kaori Kodama, em mais uma entrevista da seção "Conta aí, mestre"!

O que podemos entender por "vulgarização do conhecimento científico"?

Aline Salgado: Em linhas gerais, a "vulgarização da ciência" é um termo nativo da época. Na passagem do século XIX para o XX, os periódicos e revistas especializados, ou até romances que buscavam difundir a ciência no Brasil, utilizavam o termo "vulgarização". A terminologia é a mesma que era adotada na França. Os autores referenciais da História da Divulgação Científica, tais como Moema Vergara e Kaori Kodama, apontam que a influência francesa na cultura brasileira pode ter sido determinante para a adoção do termo. Além disso, ao adotarmos uma terminologia da época, nos permitimos pensar a divulgação científica tal como era promovida no período. Isto é, o ato de falar sobre a ciência na virada do século XIX para o XX passava por uma concepção que, em termos gerais, estava restrita à busca pela tradução do conhecimento para um público tido como "leigo" e que precisava ser iniciado no mundo das luzes, representado pela ciência e pelo progresso das máquinas. Não havia o diálogo e nem as concepções de "engajamento público", presentes em estudos da segunda metade do século XX e século XXI. 

Do ponto de vista da história das ciências, qual é a relevância de se estudar o episódio da Revolta da Vacina?

Aline Salgado: A relevância de se estudar a Revolta da Vacina está no fato de considerarmos a vacina e, assim, a ciência institucionalizada, como motivadores para o movimento. Na nossa pesquisa, buscamos fazer uma releitura crítica sobre um episódio bastante trabalhado pela historiografia. Mas, para isso, trazemos um olhar diferenciado. Olhar que vem do campo da divulgação científica e da história do jornalismo. Sendo assim, além de nos aproximarmos das perspectivas mais recentes trabalhadas por autores da história da saúde no Brasil - que consideram que a vacina foi um motivador para o movimento social, diferente do que alguns autores clássicos consideravam, já que a viam como um subterfúgio para planos que envolviam um golpe político a Rodrigues Alves, então presidente do Brasil -  procuramos compreender o papel dos jornais como agentes de mobilização social. Dentro disso, os jornais, ao atuarem como agentes da "vulgarização da ciência", promoveram não só a difusão de informações sobre a vacina, a vacinação e a ciência institucionalizada (aquela apoiada pelo Estado e representada pela microbiologia), como também contribuíram para que o debate sobre a vacinação saísse das casas legislativas e ganhasse as ruas e a boca do povo. Logo, eles também teriam contribuído para a mobilização da população e para a Revolta em si.  

Como a grande imprensa atuou como mediadora da vulgarização do conhecimento científico na época que você estudou?

Aline Salgado: Conforme o projeto de lei que instituía a obrigatoriedade da vacina e da revacinação contra a varíola foi avançando no Senado e na Câmara, a imprensa foi ofertando mais espaço aos debates que envolviam tanto o polêmico projeto, quanto a ciência e a vacina. Seja por meio de editoriais, artigos de opinião e cartas de leitores.

O que caracterizou a cobertura do Correio da Manhã e da Gazeta de Noticias?

Aline Salgado: É interessante notar que os jornais estudados acabaram oferecendo múltiplos espaços não só à cobertura do projeto de lei, como também ao tema da vacina, da vacinação e da própria varíola. Logo, observou-se que a ciência, por meio da vacina, passou a ocupar espaços que se assemelham hoje a editoriais, notas jornalísticas, reportagens, artigos de opinião, cartas dos leitores. Foi assim que a grande imprensa passou a atuar como mediadora da vulgarização da ciência. Isto porque, ao mesmo tempo que transmite uma informação, a imprensa ressignificava essa mensagem e a produzia sob novos formatos. Ela é um transmissor e produtor cultural, nessa perspectiva.

Dentre todas as práticas de divulgação da ciência, do ponto de vista do conteúdo, observou-se em duas colunas - a do médico e deputado federal Bricio Filho, no "Correio da Manhã", e da Associação dos Empregados do Commercio do Rio de Janeiro, na "Gazeta de Notícias"- uma busca por esclarecer dúvidas da população sobre a vacina. Essas colunas foram por isso tidas como especiais, por se revelarem, em essência, espaços que visavam levar a ciência ao alcance de todos. A preocupação em ser didático, em usar termos comuns (não técnicos) e a busca por sanar dúvidas apontadas como recorrentes são os diferenciais desses espaços. 

Em seu trabalho, você menciona uma transformação e migração dos espaços de popularização da ciência. Até o século XIX, esses espaços seriam uns e, depois, outros. De quais espaços estamos falando e o que pode ter influenciado essa migração?

Aline Salgado: Em sua dissertação de mestrado e artigos, Luisa Massarani e seu orientador Ildeu de Castro Moreira destacam o quanto a segunda metade do século XIX foi rica em termos de ações de popularização da ciência. Essas ações se traduziram no aumento dos romances científicos traduzidos por livrarias que estavam instaladas no Brasil, na promoção de conferências públicas sobre assuntos científicos, cursos populares, exposições e na publicação de revistas e jornais especializados. Mas, segundo os autores, na última década do XIX e primeira do XX, essas ações param de existir, como se "desaparecessem". Um movimento que se assemelha ao que já foi observado por outros autores no contexto internacional. Em nossa pesquisa, entendemos que as ações de popularização da ciência não desapareceram. Elas teriam migrado para outros espaços, como as escolas, por exemplo. Conforme movimento semelhante ocorrido na França, por meio da expansão do ensino, os romances científicos passaram a ganhar lugar nos livros escolares. Da mesma forma, observamos que, no Brasil, os jornais passaram a dar mais espaço à ciência. É importante frisar que a maior aparição da ciência na imprensa também está ligada ao próprio processo de institucionalização da ciência no Brasil. Em outras palavras, a ciência autorizada pelo Estado passa a ser assunto da mídia ao entrar em conflito com a cultura médico-científica anterior e promover ações como o "bota-abaixo", a vacinação obrigatória e a criação dos institutos soroterápicos. O que se assiste nesse período também são as relações de tensão e negociação entre culturas científicas. De um lado, a microbiologia de Pasteur e a medicina experimental, do laboratório. Do outro, a ciência que acreditava que as doenças eram provocadas por ares impuros que emanavam dos solos (miasmas) e na medicina clínica.

Como a sua pesquisa busca contribuir para a historiografia da divulgação científica?

Aline Salgado: A história da divulgação científica é um campo bastante novo e que carece de novos estudos. Compreendo que minha pesquisa vem a contribuir nos esforços de construção da área, além de trazer novos olhares sobre a própria história da ciência e da saúde no Brasil. 

 

Publicado em 05/09/2018

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