Por Renata Fontanetto
A graduação em museologia na Unirio trouxe três paixões: concepção e design de exposições, bem como os museus de ciência. De certa forma, a pesquisadora Julia Pereira carregou esses interesses a outro nível quando decidiu cursar o mestrado em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde na Fiocruz, concluído em 2021.
Em sua dissertação, “Materializando o futuro?: A construção do discurso expositivo no Museu do Amanhã”, Pereira analisou a principal exposição do Museu do Amanhã, famoso museu de ciências localizado no centro do Rio de Janeiro. Foram duas as análises: a de texto e a do design expositivo, buscando entender como o museu mostrou a ciência a seus visitantes.
Por trabalhar com o tema do design em exposições de ciência desde a graduação, o interesse da pesquisadora em realizar o mestrado surgiu antes do curso. “Sempre gostei de atividades relacionadas à arte e à produção, como o design, tendo até cogitado como curso de graduação previamente”, relembra.
Foi quando foi estagiar na seção de Museologia do Museu Nacional que Pereira foi associando o design às exposições. “Todos os dias, muitas horas por dia, eu estava naquele museu! Passei horas até o fechar dos portões, perambulando com a equipe pela exposição, verificando se tudo estava em ordem, higienizando as vitrines e o acervo, pensando e executando pequenos projetos para melhorar a mostra e concebendo novas exposições junto aos outros membros da Seção de Museologia e curadores das coleções”, relata. O passatempo predileto da museóloga? Entreouvir as conversas dos visitantes para entender o que achavam da visita!
Todas essas experiências culminaram no mestrado. Alguns dos resultados da pesquisa você encontra nas respostas da pesquisadora, que foi sabatinada pelos visitantes do Museu da Vida nas redes sociais. Boa leitura!
@juliadumardd sou sua fã, parabéns mestra! Bora lá: qual modelo de comunicação pública da ciência você mais encontrou na proposta dessa exposição principal? O que esse resultado conta pra gente e pra sociedade?
Resposta: Olá, Renata! O modelo que mais apareceu durante minha análise da exposição foi o Modelo de Déficit. Para quem não está familiarizado com os modelos, o Modelo de Déficit é uma forma de pensar a comunicação onde quem está falando (no nosso caso, o Museu do Amanhã) parte do princípio de que quem está recebendo esse discurso (no nosso caso, o visitante da exposição) tem uma lacuna de conhecimento que precisa ser preenchida e que quanto maior a quantidade de informação fornecida, mais conhecimento esse visitante terá ao final da visita. A comunicação pensada dentro desse modelo também parte da ideia de que uma pessoa toma decisões ruins pois é pouco informada, e que basta lhe apresentar a informação correta e ela tomará melhores decisões a partir de então. Acho interessante pontuar que, embora em sentido geral possamos até concordar com uma relação entre o acesso à informação e a tomada de decisões mais informadas, o modelo de déficit trabalha especificamente em uma lógica quantitativa – quanto mais, melhor - e que generaliza todas as pessoas como um único sujeito, o que quer dizer que não são consideradas as características de grupos diferentes da sociedade e nem é pensado qual a melhor maneira de comunicar a informação para esses grupos especificamente, o que acaba por excluir uma parcela da sociedade do real acesso à informação, ou ademocratização da informação, que parte do princípio de que não basta ter alguém que forneça a informação, mas essa informação precisa ser compreendida por quem a recebe. A informação precisa fazer sentido para o visitante, em seu contexto de vida.
O conteúdo expositivo analisado retrata de alguma forma a sociedade atual? Caso sim, qual forma?
Resposta: Márcia, pensando nos resultados da minha pesquisa sou obrigada a te responder que sim e que não ao mesmo tempo. Vou explicar melhor. Por um lado, a exposição apresenta – embora que sem profundidade – em diferentes momentos, temas que são debatidos atualmente em diversos campos científicos, especialmente relacionados com o desenvolvimento tecnológico. Por outro, todos esses pontos estão na exposição como uma "grande apresentação de tudo de bom que a ciência fez e pode fazer pela humanidade e pelo planeta", ignorando completamente um olhar mais crítico ao fato de muitos desses avanços tecnológicos terem sido os responsáveis por criar os problemas que enfrentamos hoje em primeiro lugar. Mais grave ainda, e esse é um ponto-chave na análise que fiz na dissertação, é que o discurso coloca os seres humanos como responsáveis por utilizar de forma irresponsável e/ou errada e ciência, que seria necessariamente boa, como se a ciência fosse algo criado por seres não humanos e sem a influência de qualquer força econômica, social, política, ideológica, institucional etc. Nesse sentido, a sociedade aparece muito em segundo plano, apenas como a que será beneficiada por aquilo que a ciência, a grande protagonista, tem a oferecer e que não se relacionam exclusivamente aos problemas sociais que temos hoje. Dito isso, me parece que a força desse discurso acrítico sobre a ciência é também um retrato da sociedade atual, ao mesmo tempo que não é, pois vivemos hoje uma grande disputa entre os que acreditam que somente um discurso acrítico sobre a ciência seria capaz de fazer com que as pessoas tenham confiança nela, e aqueles (com os quais concordo) entendem que uma visão crítica da ciência mais aproximaria a sociedade, passando a ideia de um conhecimento que pode não ser único e definitivo, mas que é confiável.
aliceribeiro272
Parabéns @juliadumardd ! O discurso que você identificou promove o debate público sobre ciência? Como você acredita que os museus de ciências podem promover este debate?
Resposta: Alice, infelizmente, não. O discurso que identifiquei no Museu do Amanhã não deixa espaço para que o público debata ciência e, sim, para que confie e goste de tudo aquilo que ela produz e os resultados que obtive mostram a força desse discurso no Museu muito claramente. Sobre a sua segunda pergunta, minha resposta mais sincera é: fazendo o oposto disso. Não vejo a possibilidade de promover qualquer espécie de debate quando a ciência e a sociedade são colocadas em postos tão desiguais, onde a ciência é a dona absoluta de toda e qualquer verdade e só cabe à sociedade aceitar e agradecer. Esse tipo de postura, impositiva e intimidadora, mais intimida e afasta as pessoas do que atrai. Primeiro, é preciso entender que, dificilmente, se confia em algo que não se entende, então, se queremos que as pessoas confiem na ciência, precisamos primeiro que elas a entendam, e entender não é só ter acesso ao resultado final; é entender - minimamente que seja - o processo que torna possível esses resultados. Outro ponto importante é entender que confiar não quer dizer nunca questionar. Pelo contrário, eu diria: as chances de questionarmos alguém que confiamos são muito maiores do que alguém que não confiamos, justamente por serem figuras intimidadoras. Assim, é necessário que haja esse movimento na sociedade científica de abraçar os questionamentos do resto da sociedade e não os repelir por medo de ter sua autoridade questionada.
maymanoli
Parabéns pela pesquisa, Julia!! Gostaria de saber de que maneira aparece, no discurso expositivo, a dimensão do indivíduo e do coletivo na responsabilização pelos grandes problemas ambientais que enfrentamos na atualidade.
Resposta: Mayara, em todos o discurso expositivo a responsabilidade pelos grandes problemas ambientais recai especialmente sobre o indivíduo. Não que "a sociedade" não seja mencionada em diversos momentos, mas é apenas uma menção na maioria das vezes, um ponto de partida para chegar no indivíduo. Outro ponto que vale mencionar é que, por sociedade, o discurso se limita basicamente a falar de uma soma dos seres humanos que habitam a terra, ou seja, a política fica de fora, a economia, as grandes corporações etc. Basicamente, todos os maiores responsáveis – e, por consequência, os que poderiam fazer mais para solucionar o problema ou evitar que ele piore – são convenientemente deixados de lado. Dessa maneira, o foco recai sobre o indivíduo e aquilo que pode mudar em alguns de seus hábitos de consumo, como comer menos carne, mudar a forma de locomoção para transporte coletivo ou que não emitam gás carbônico...esse tipo de coisa.
_amarelodeserto
O Museu do Amanhã tem muito de "espetacular" em suas concepções visuais e museológicas. De que maneira isso influencia no discurso expositivo? Ele ajuda ou atrapalha no acesso do espectador ao conteúdo?
Resposta: Como comento no meu trabalho, o uso do espetacular por si não é um problema, mas justamente aquilo que você aponta na sua segunda pergunta: o fato dele ajudar ou atrapalhar o conteúdo. No caso do Museu do Amanhã, por vezes, o uso do apelo estético é tão central que é possível identificar com clareza que recebeu mais atenção do que o próprio conteúdo da exposição. Muitas questões se ligam a essa estética do espetacular, tratadas com mais detalhes na minha dissertação, mas aponto aqui os principais problemas identificados. Primeiro, o espetacular pode realmente maravilhar o visitante, mas também pode ser intimidador, e na exposição o espetacular representa a própria ciência. Portanto, acho problemático o uso excessivo desse tipo de estética. Outro ponto é o excesso de informação, que tem ligação direta com a ideia do modelo de déficit, mas que na exposição é também um recurso estético "espetacular": são muitos textos, muitas luzes, muitas cores, muitos sons, muito tudo, o que pode causar no visitante tanto uma sobrecarga sensorial quanto informacional, atrapalhando tanto a experiência – gerando qualquer tipo de mal-estar –, quanto o próprio acesso ao conteúdo já que ele fica disperso num mar de conteúdo. Por fim, espacialmente falando, em diversas situações os recursos visuais que chamam a atenção do visitante estão posicionados de uma forma que, justamente, os afasta dos espaços com conteúdo, mostrando um claro conflito naquilo que a exposição julga mais importante na exposição.
melmmcs
Parabéns pela pesquisa, Júlia!
Você pode destacar o que mais te atraiu na exposição no campo do design? Gostaria de saber mais sobre as técnicas visuais que o Museu utiliza para ganhar o interesse do público.
Resposta: Obrigada! Então, o que me atraiu foi o exagero, o uso constante feito pela exposição do recurso estético do "espetacular", justamente por ser algo que, em todas as visitas prévias ao museu, me sobrecarregou sensorialmente, fazendo com que as experiências fossem de desconforto. Trabalhando com a concepção e design de exposições desde a graduação em museologia, minha curiosidade era saber até que ponto esses recursos colaboravam ou não com as outras partes do discurso expositivo, como são os textos. Como comento na dissertação, embora o museu se apresente com uma proposta inovadora, infelizmente não vemos nada de novo e inovador na exposição, apenas uma mudança de suporte para conteúdos que poderiam facilmente ser encontrados da mesma forma em um museu tradicional. No geral, os textos, que tradicionalmente estariam apresentados nas paredes em materiais impressos, foram transferidos para monitores e é basicamente isso. Obviamente o uso do monitor permite apresentar muito mais texto – usando o recurso de diferentes páginas pelas quais o visitante navega – do que seria possível expor em uma parede caso fossem textos impressos, mas, para além disso, não identifiquei nada realmente inovador. Quanto ao conteúdo, são apresentados textos, imagens, gráficos e vídeos, impressos ou em monitores, nada de novo. O recurso de design expositivo mais "inovador" e que atrai mais a tenção do público são as estruturas arquitetônicas que compõem cada parte diferente da exposição, que, apesar de interessantes, não servem ao propósito de facilitar o acesso ao conteúdo da exposição. Pelo contrário, muitas vezes dispersam o visitante no sentido oposto ao que está o conteúdo e, invariavelmente, chamam mais a atenção do que ele, seja fora ou dentro dos módulos.
Publicado em 13 de outubro de 2021