Por Melissa Cannabrava
Em dezembro de 2020, Higor Tomaz, novo mestre em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz, defendeu a dissertação "Como o público enxerga a teoria da evolução e como se manifesta sobre ela nas redes sociais?". Higor buscou pelas palavras-chave “teoria da evolução” e “seleção natural” no Youtube e, a partir delas, destacou a percepção da teoria da evolução e da seleção natural em comentários de vídeos relacionados a esses temas.
Ao total, foram selecionados 24 vídeos. Desses, cinco remanescentes foram identificados a partir de canais de youtubers que participam do coletivo ScienceVlogs Brasil. Higor
selecionou aqueles com maior número de visualizações em relação às palavras-chave adotadas na busca, caracterizando duração, visualizações, likes, dislikes, profissão dos apresentadores e produção audiovisual.
Os 100 primeiros comentários de cada um dos vídeos foram filtrados por ordem de relevância, conforme determinado pelo YouTube, e submetidos a uma análise de conteúdo. Os resultados sugerem que a busca direcionada para evolução e seleção natural no YouTube leva o internauta, na maioria das vezes, a conteúdo de teor educativo, científico e opinativo. Entre os principais personagens que divulgam e transmitem informações sobre evolução e seleção natural no Youtube, predominam cientistas, acadêmicos e professores.
Darwinismo e criacionismo foram as vertentes de pensamento mais presentes nos comentários, com argumentações de origem científica e religiosa, respectivamente. Conceitos como a ancestralidade comum, seleção natural e o significado popular do termo “teoria” foram os principais responsáveis por suscitar embates nos comentários.
Convidamos você, do nosso querido público do Museu da Vida, para um mergulho na dissertação do biólogo e novo mestre em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde da Fiocruz Higor Tomaz.
@thaylib93
"A religião tem grande influência nas percepções, ou até mesmo, na rejeição da teoria da evolução?"
Higor Tomaz: Oi, Thaís, tudo bem? Obrigado pela pergunta! Bom, existem muitos estudos sobre a influência que a religião exerce na percepção das pessoas sobre evolução, e o que posso dizer é que há divergências sobre a influência direta da religião na rejeição da evolução. Porém, quanto à influência na percepção, a própria enxurrada de estudos que tematiza a relação da evolução com a religião já mostra que é notória essa influência. No que diz respeito aos resultados da minha pesquisa, sim, há influência da religião na percepção das pessoas sobre evolução. Muitas vezes, nos comentários, as pessoas demonstravam estar em conflito com crenças religiosas em relação às evidências colocadas pela teoria da evolução. Além disso, a maior parte dos comentários que rejeitavam a evolução tinha como base argumentações religiosas. Acho que é importante entender que existem muitas nuances a serem consideradas para entender a natureza dessas influências. Por exemplo, entender o contexto social do indivíduo e o contato dele com instituições religiosas. Diversos estudos mostram que nas periferias e nos subúrbios há maior presença de instituições religiosas, principalmente de natureza cristã-protestante. Pessoas dessas regiões periféricas geralmente têm contato diário com a religião, muitas delas desde a infância; é algo que faz parte da vida e da comunidade onde vivem. A teoria da evolução só é apresentada na escola por volta do 7º ou 8º ano do ensino fundamental e, ainda assim, de maneira deficiente. Com isso, muitas vezes as crenças religiosas, bem como a forma de enxergar e pensar o mundo através da religião, encontram-se já bem estabelecidas na vida dessas pessoas, de modo que, quando elas se deparam com a teoria da evolução, naturalmente enfrentam conflitos internos entre suas concepções religiosas e as concepções evolucionistas. Mas, reitero, esse é apenas um dos olhares para o assunto; existem muitos outros a serem considerados, o tema é complexo.
@cala.latinoamerica
"Existe alguma relação entre os negacionistas de vacina e os negadores da evolução????"
Um prazer responder à pergunta do pessoal do Centro de Cultura e arte Latino-Americana! Não existe nenhum estudo que correlacione de forma direta os negacionistas de vacina com as pessoas que rejeitam a evolução. Porém, vale a gente entender que compreender corretamente os conceitos básicos da teoria da evolução é fundamental para que se entenda, por exemplo, a dinâmica de uma epidemia ou pandemia e, consequentemente, entender como uma vacina funciona e como ela irá agir efetivamente. Ou seja, mesmo que indiretamente, negar a evolução, apesar de várias causas, pode, sim, ter como fim negar vacinas, por exemplo.
@carlabenemond
"Qual a diferença entre as pessoas criacionistas e as evolucionistas, ou seja, pq acreditam em uma e não na outra, não existe 1 ponto em comum nas duas teorias? Tem como acreditar nas duas? O que faz uma 'teoria' ser 'verdade'?"
Oi, Carla! É uma ótima pergunta! Primeiro, é importante ressaltar que existe um grande leque de pensamentos sobre a evolução, desde os que negam a evolução, passando pelos que tentam conciliar as visões religiosas com a evolução - como os adeptos do evolucionismo teísta e criacionismo científico -, até os que compreendem, aceitam e adotam a evolução por seleção natural como principal norte para entender a história natural do planeta e, principalmente, a história natural da nossa espécie. O grande problema é que existe, por parte de algumas vertentes cristãs, a cultura de interpretar de maneira literal a Bíblia, em especial o livro de Gênesis (principal base para o criacionismo). Essas interpretações provocam uma série de concepções equivocadas sobre o processo evolutivo e a teoria da evolução. Para expor melhor como essa questão é complexa, na minha pesquisa eu observei que diversas percepções mostravam a dificuldade de pessoas religiosas em aceitar que o homem faz parte do processo evolutivo - tal como os outros animais - justamente por conta de uma interpretação literal da bíblia, considerando que o homem é fruto do processo de criação divino, à imagem e semelhança de Deus, como descrito no livro do Gênesis. Os religiosos criaram vertentes como o criacionismo científico, que busca reinterpretar as escritas bíblicas com base em acontecimentos descritos pela literatura científica sobre a história natural, a fim de conferir veracidade e status de fatos científicos a esses acontecimentos bíblicos. É nesse contexto que o criacionismo, através de uma teoria pseudocientífica, tenta incorporar e se conciliar com a teoria da evolução. Mas deixo claro que, sim, é possível você conciliar a evolução com a religião. As pessoas têm liberdade para construir suas concepções. Entretanto, é um erro técnico e conceitual colocar qualquer vertente criacionista como teoria científica. Com isso, caímos também na sua pergunta sobre o que faz uma teoria ser verdade ou não. O significado popular ou não científico do termo “teoria” é um dos argumentos mais utilizados por alguns criacionistas e anti-evolucionistas para contestar a evolução, utilizando a máxima: “A evolução é apenas uma teoria, se fosse realmente válida, seria uma lei’’, tentado diminuir a importância da teoria da evolução pelo seu status de “teoria”. Então, não é questão de ser uma teoria de verdade ou não, a questão é ser uma teoria científica ou não. Digo isso porque o criacionismo tem sua verdade estabelecida na esfera cultural e no modo de vida de diversas pessoas ou grupos. Porém, não é teoria científica justamente por não possuir base de evidências palpável e testável. Uma teoria científica é o mais alto grau de confiabilidade de um conjunto de conhecimentos baseados em evidências testáveis que procura explicar fenômenos abrangentes da natureza, e é aí que a teoria da evolução se encaixa e se institui como uma das teorias científicas mais revolucionárias dos últimos séculos.
@banbilbanspiel
"Qual é o papel da nossa forma de pensar educação na percepção pública sobre a evolução?"
Se tratando do Brasil, diversos estudos mostram que no ensino fundamental a evolução tem a mesma carga horária de outros conteúdos e é colocada apenas para o 7º ano e 8º ano. No ensino médio a evolução é abordada na maioria das vezes no 3º ano do ensino médio, também sem qualquer protagonismo. Quanto ao ensino superior, trabalhos mostram que há uma grande deficiência na formação de professores de biologia nas questões sobre evolução, principalmente por conta de uma carga horária deficiente do assunto na graduação. Há um consenso na área da pesquisa do ensino da evolução que, a teoria da evolução é o alicerce de toda a biologia moderna, sendo um dos principais, se não o principal eixo integrador de conceitos na Biologia, e que deve ser incorporada nos currículos como tal, em todos os níveis de ensino. O Brasil hoje apresenta uma educação conteudista, fincada com os dois pés no tecnicismo. Com isso, muitas vezes o foco do ensino-aprendizagem fica no nível da informação, os conteúdos não são contextualizados, além disso, não são vistos com a integralidade que deveriam. E aí, acho que fica claro entender que a maneira tecnicista de pensar educação no Brasil prejudica o ensino de evolução, consequentemente influenciando negativamente na percepção da evolução. Inclusive, deixo uma dica aos professores que estiverem lendo. Em minha pesquisa cito uma iniciativa de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que publicaram no início desse ano (2021) os livros “Ensino de Biologia: uma perspectiva evolutiva” em dois volumes. Ótimo guia que apresentam uma nova e detalhada sugestão de abordagem para o ensino de biologia baseado na evolução como eixo central das disciplinas biológicas.
@renata_fontanetto
"Fala, Higor! Parabéns, queridoooo! Poderia nos contar um pouco mais sobre essas percepções? Alguma delas teve ligação com uma atitude política?"
Olá, Renata! Obrigado!! Olha, houve percepções de todos os tipos, desde as mais influenciadas pela religião, como mencionado nas respostas anteriores aqui, como algumas até mesmo pautadas em diversos raciocínios científicos. Muitos indivíduos mostram que, em algum nível, usam de diversos conceitos científicos de várias áreas para construir suas próprias ideias sobre a evolução. Essas concepções partem, muitas vezes, de pressupostos e de experiências acumuladas ao longo da vida que, ao serem fusionadas com conceitos científicos relacionados, por exemplo, ao cosmos, à física e a outras disciplinas científicas, culminam em novas ideias e percepções sobre como se dá a evolução dos seres vivos. Isso nos mostra que a teoria da evolução possui um amplo espectro de percepções. Quanto à atitude política, não houve qualquer menção à figura política ou partido político.
@fernando_alves42
"Parabéns Mestre! Quais os desafios para analisar comentários virtuais que podem variar entre pessoas engajadas nas questões de ciências e 'trolls' de internet?"
Tudo bem, Fernando? Obrigado pela pergunta! Bom, acho que nesse caso não houve tantos desafios em identificar e triar os comentários dos “trolls”. Quase sempre eles se manifestavam com comentários sem qualquer base argumentativa, do tipo: “A evolução é uma farsa! Quem acha que isso é ciência, vá tomar banho!”. Os engajados deixavam claro que estavam ali para debater e era sempre possível identificar que havia alguma base argumentativa para pode analisar.
@maymanoli
"Oi, @higor.tomaz_ ! Parabéns pela pesquisa. Vc notou divergências muito grandes entre comentários de usuários de diferentes faixas etárias?"
Oi, Mayara! Obrigado pela pergunta e pelos parabéns! Olha, com as ferramentas disponíveis no YouTube, não era possível saber a faixa etária dos indivíduos que comentavam. Porém, o que eu pude observar é que o conteúdo destinado para o ensino médio/vestibular, que geralmente é destinado a jovens que pretendem prestar o vestibular, tinha pouco engajamento comparado aos canais de divulgação científica. Ou seja, conteúdo expositivo ou em formato de aula provavelmente provoca menos engajamento em jovens na questão da discussão sobre evolução.
@Jarbascerdeiro
"De alguma forma, a pandemia interferiu na construção da metodologia da sua pesquisa? Parabéns, Mestre!"
Obrigado, Jarbas! Sim, interferiu e muito! Inicialmente, a pesquisa seria presencial com a realização de entrevistas com estudantes de licenciatura em ciências biológicas. Com a pandemia, houve a necessidade de migrar a pesquisa inteiramente para o ambiente digital. Com isso, eu e meus orientadores tivemos a ideia de analisar as percepções das pessoas sobre evolução em comentários de vídeos do YouTube. No final de tudo, fiquei satisfeito com a abordagem e a metodologia que desenvolvemos. O YouTube se mostrou um terreno extremamente fértil para entender percepções sobre a teoria da evolução, e a metodologia que tive a oportunidade de desenvolver tem potencial para ser utilizada no campo da percepção pública da ciência em âmbito digital. Os resultados foram ótimos.
Publicado em 14 de julho de 2021.