Fotos e cartas costuram histórias. Histórias de violência, perda, dor. Histórias de "Ausência", exposição da fotógrafa Nana Moraes, que esteve em cartaz até dezembro de 2018 na Cavalariça, prédio histórico da Fiocruz, em Manguinhos. "Ausência" aborda o complexo e dramático universo das mães presidiárias, privadas não só da liberdade, mas também do convívio com os filhos. Uma abordagem sensível e emocionante, com registros de trocas de correspondências fotográficas.
São poucas as presidiárias que recebem visitas de parentes. "Quando o homem é preso, a mulher vai visitá-lo. Quando é o contrário, o homem desaparece. A mulher não tem perdão da família, da sociedade”, conta Nana, que fez uma extensa pesquisa sobre o tema. Mesmo quando não são abandonadas, ficam sem contato com os filhos: ou porque sentem vergonha de que eles as vejam presas, ou porque estão em presídios distantes de sua cidade - muitas são presas em trânsito, por tráfico de drogas.
As presidiárias formam um grupo extremamente estigmatizado. Em trabalho anterior, o olhar sensível de Nana provocou reflexões contando as histórias de prostitutas de estrada, das quais, muitas vezes, ouviu: "Posso ser prostituta, mas não sou criminosa. Prostituição não é crime”. Surgiu, assim, a motivação de compreender melhor quem são essas mulheres que vivem atrás das grades, especialmente aquelas cujos filhos também cumprem pena: a de crescer longe da mãe.
Foram quatro anos tentando a autorização para realizar o trabalho. Foi então que Nana propôs à Coordenação de Inserção Social da Secretaria de Estado e Administração Penitenciária do RJ (Seap) o projeto “Travessia”. Este teve como objetivo estabelecer uma “correspondência fotográfica” entre as mães detentas e suas filhas e filhos fora da prisão, a fim de recriar os laços afetivos rompidos de forma tão violenta. Finalmente, com a devida permissão, conheceu 17 detentas e suas biografias. Fotografou cada uma delas, dentro do presídio, em um fundo com a fotografia de um céu como cenário, produzido por Nana. Imprimiu as fotos selecionadas pelas participantes. Ofereceu-lhes papel e canetas coloridas para que, além das fotos, as mães pudessem enviar cartas para os filhos.
Tinha início um novo desafio: ir à casa das famílias para fazer fotos dos filhos e coletar mensagens deles para suas mães. Somente seis famílias consentiram, e o resultado dessa emocionante empreitada Nana Moraes entregou às detentas, em mãos, juntamente com mais papéis, canetas e selos, para que elas pudessem continuar a se corresponder com seus filhos.
Mas o trabalho da fotógrafa-mensageira ainda não tinha acabado. Com pedaços de tecido e fotos das 17 participantes do projeto, Nana fez uma colcha de retalhos, onde bordou, ainda, palavras representativas das tantas conversas travadas durante o projeto, como “mãe”, “impedida”, “saudade”, “perdão”. Também foi feita uma colcha para cada uma das seis mães que receberam o retorno dos filhos.
Inspirada nas arpilheras, Nana produziu as sete colchas. Trata-se de uma técnica têxtil manual, que ficou conhecida pelas arpilheras chilenas, as quais, como forma de resistência à ditadura, construíam cenas com tecidos, linhas e agulhas. "Perguntaram por que eu não pedi às detentas que fizessem esse trabalho manual para mim. Expliquei que eu fazia questão de produzir para elas. Porque, quando você faz um trabalho manual para alguém, é sinal de que você se importa. E foi pensando nelas que costurei cada pedaço, cada pontinho. Foi como se eu continuasse a dialogar com elas”, conta a fotógrafa, que apresenta em vídeo seu processo criativo de confecção das colchas - ao som de "Cisne Negro", de Villa-Lobos, com interpretação de Naná Vasconcelos.
Linhas soltas, costuras tortas: as colchas, assim como as histórias que elas contam, têm várias imperfeições, mas são repletas de significados profundos. E, por isso mesmo, mais do que uma simples exposição, colchas, cartas e fotos formam uma emocionante narrativa. Na Cavalariça da Fiocruz, os visitantes puderam, ainda, assistir ao documentário "Nascer nas Prisões", fruto de uma pesquisa pioneira da Fiocruz sobre o tratamento que grávidas presas recebem durante a gestação, o parto e os primeiros meses de vida dos filhos em unidades prisionais de todo o Brasil.
"Ausência", sobre mães presidiárias, faz parte da trilogia de livros "DesAmadas", que dá visibilidade às trajetórias de mulheres estigmatizadas e começou com "Andorinhas", sobre prostitutas de estrada. O próximo trabalho de Nana Moraes será sobre mulheres em situação de rua.
Mulheres nas prisões
Segundo informações divulgadas pela Agência Brasil, existem hoje no Brasil mais de 726 mil pessoas encarceradas, homens em sua grande maioria. Entre 2000 e 2016, porém, o número de mulheres presas no país subiu de cerca de 5.600 para mais de 44.700, o que representa a quinta maior população carcerária feminina do mundo, atrás de Estados Unidos, China, Rússia e Tailândia. No Brasil, 60% delas foram presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas, tendo, em geral, praticado ações coadjuvantes nesses crimes. Os levantamentos também mostram que de 80% são mães e principais (ou únicas) responsáveis pelo cuidado de filhos.
Sobre a Cavalariça
A Cavalariça é um dos prédios que compõem o Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos (NAHM), dos quais o mais famoso é o Castelo da Fiocruz. Assim como o Castelo e todos os demais prédios do NAHM, a Cavalariça também é de autoria do arquiteto português Luiz Moraes Junior e foi idealizada com a participação do próprio Oswaldo Cruz. Construída entre 1904 e 1905, ela abrigava os cavalos que eram utilizados na produção de soros para tratamento de doenças. Considerada um patrimônio cultural, ela é tombada desde 1981 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), uma proteção estabelecida pelo poder público para que um bem cultural (como um edifício) não seja destruído nem perca suas características.
Atualizado em 17/12/2018