O ano era 2015 e um experimento abalou a comunidade científica brasileira: a fosfoetanolamina sintética, substância criada pelo químico e professor aposentado da USP Gilberto Orivaldo Chierice, ganhou as páginas dos noticiários. Popularmente conhecida como ‘fosfo’ ou ‘pílula do câncer’, ela era associada à cura (não comprovada) para a doença que é vice-líder em causa de mortalidade por todo o mundo, segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde.
A repercussão na mídia impressionou a então graduanda em química e hoje mestra em divulgação científica pela Fiocruz Marcela Alvaro, que defendeu em julho a dissertação ‘A Pílula do Câncer na TV: um estudo das reportagens sobre o caso fosfoetanolamina’. “Eu queria entender como um caso de controvérsia científica era mostrado”, explica Marcela, que planeja transformar parte de suas conclusões também em artigo. A pesquisadora responde às perguntas enviadas pelos seguidores do Museu da Vida nas redes sociais em mais uma entrevista da série “Conta Aí, Mestre”.
Tatiane Alves (@tatiana.alves.796): De onde veio essa substância e quais são os entraves para que ela seja comercializada no país?
Marcela Alvaro: A fosfoetanolamina começou a ser estudada ainda nos anos 1970, quando foi encontrada em tumores bovinos. É uma substância presente naturalmente nos nossos organismos. Nos anos 1990, o então professor da USP-São Carlos, Gilberto Chierice, falecido em julho de 2019, sintetizou a substância em seu laboratório e passou a distribuí-la de modo informal aos pacientes com câncer que vinham até ele em busca de um tratamento alternativo. O entrave era a falta de registro na Anvisa. No Brasil, um medicamento só pode ser comercializado se tiver registro no órgão regulador. Para isso, ela precisava passar por uma série de testes que comprovassem sua segurança e eficácia no tratamento dos diversos tipos de câncer. Entretanto, os testes foram feitos e não foi comprovado.
Renata Fontanetto (@renata_fontanetto): Marcela, belíssimo tema! Quais são as etapas necessárias para que um medicamento seja comercializado? Como a fosfoetanolamina fugiu dessas regras e acabou pulando etapas?
Marcela Alvaro: Obrigada! Para um medicamento ser comercializado, ele precisa ser registrado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). São etapas que demandam muito tempo e investimento, tomando cerca de dez anos para que apenas um medicamento chegue ao mercado a partir de uma média de 1 milhão de moléculas estudadas. Por conta das diversas disputas judiciais e dos grupos de pressão organizados pelos pacientes, a fosfoetanolamina acabou antecipando algumas etapas. Ela chegou a ter uma lei, de autoria do atual presidente da república, sancionada em poucos dias, que liberava o uso e distribuição da substância mesmo sem todos os testes terem sido concluídos. O professor Chierice e sua equipe dispunham apenas de resultados em camundongos que indicavam uma possível eficácia.
Renata Fontanetto (@renata_fontanetto): Quais foram as emissoras analisadas e o que você queria saber com a sua análise - ou seja, quais foram as perguntas norteadoras?
Marcela Alvaro: Eu analisei as três emissoras de maior audiência no Brasil: Globo, Record e SBT. O objetivo era saber como essas emissoras retratavam um caso de controvérsia científica, quais eram os enfoques mais utilizados (científico, político/jurídico, drama do paciente, ético/moral, comercial e outros), quais eram as principais fontes de informação usadas, que atores eram entrevistados e quais eram os principais argumentos utilizados nas matérias (contra e/ou a favor do uso da substância).
Cecília Cavalcanti (@ceciicavalcanti): Em alguma emissora foi relatado inicialmente que a cura não era comprovada cientificamente? Ou foi uma histeria coletiva?
Marcela Alvaro: Todas as emissoras falavam que a fosfoetanolamina não tinha comprovação científica. Muitas vezes, as matérias traziam os passos necessários para que um novo medicamento pudesse ter o uso liberado. Não chegaram a falar em uma histeria coletiva, mas a cobertura tinha um certo tom de alerta, para que as pessoas tomassem cuidado com tratamentos alternativos.
Thay (@oliveira.thay): Marcela, de maneira geral, como você observa que a TV abordou o tema? Foram consultados especialistas da área de uma ou mais instituições? Isso foi feito de maneira a mostrar as controvérsias em torno de uma possível cura para o câncer?
Marcela Alvaro: No geral, a TV abordou como um caso de controvérsia científica, destacando que se tratava de um assunto polêmico. Os principais especialistas consultados foram os médicos e representantes de associações médicas. Eles tinham o papel de explicar quais as implicações de se tomar uma droga que não passou pelos devidos testes. Isso foi mostrado principalmente pela Globo. Do outro lado, tínhamos os cientistas envolvidos na síntese e distribuição da substância, que eram responsáveis por explicar como a ‘fosfo’ age no organismo. O resto da comunidade científica não foi tão consultada, exceto pelos pesquisadores responsáveis pelos testes clínicos, mas eles se limitavam a fornecer informações sobre os resultados.
“É muito importante mostrar que existe um método científico por trás de cada remédio.”
Canal Saúde (@canalsaudeoficial): Você conseguiu perceber alguma diferença entre as coberturas analisadas? Alguma foi mais sensacionalista ou mais sóbria do que a outra? Todas adotaram o mesmo tom? O que você constatou sobre a seriedade e a qualidade das coberturas? Grande abraço.
Marcela Alvaro: Olá! Observei algumas diferenças relacionadas aos perfis de cada emissora. No SBT, o drama e o testemunho do paciente e seus familiares foram o foco principal. Na Record, alguns programas, como ‘Domingo Espetacular’, focavam no drama do paciente, mas também abordavam as questões jurídicas e científicas. Já na Globo, esse mesmo drama também foi mostrado, mas o destaque eram as questões jurídicas e científicas. Todas trataram o tema com seriedade, contextualizando o caso e demonstrando cuidado com o conteúdo. A principal diferença observada foi que a Globo levantou mais argumentos contra o uso da substância pelos pacientes, enquanto a Record e o SBT trouxeram tanto argumentos contra quanto a favor.
Fernanda Costa (@fernandactavora): Qual foi a maior dificuldade que você observou na cobertura do tema? As reportagens e matérias jornalísticas foram o suficiente para desmentir os casos de desinformação?
Marcela Alvaro: A maior dificuldade foi analisar programas de perfis diferentes falando sobre um mesmo assunto e não fazer juízo de valor nem sobre as matérias nem sobre os argumentos usados. Não tenho como afirmar se foram (suficientes para desmentir os casos de desinformação) ou não, porque apenas a análise dessas matérias não me permite compreender como o público recebeu esse conteúdo. Acho que não foram suficientes, porém acho também que foram necessárias para que algumas informações fossem esclarecidas.
Renata Fontanetto (@renata_fontanetto): Esse tema gera muita comoção porque o câncer é uma doença difícil de tratar e que mexe muito com o emocional das pessoas. Na sua opinião, como o jornalismo científico pode abordar o tema? Você observou essa conduta nas reportagens analisadas ou as matérias absorveram um determinado viés?
Marcela Alvaro: Pessoalmente, acho que é um tema muito delicado. A melhor forma é escutar a comunidade científica, mas também dando voz aos pacientes e à sociedade em geral. É muito importante mostrar que existe um método científico por trás de cada remédio. Não é simplesmente uma fórmula mágica, demanda investimento financeiro e tempo, e, muitas vezes, os resultados não ocorrem como o esperado. No caso da fosfoetanolamina, alguns programas, principalmente do SBT e da Record, mostraram toda a trajetória dos pacientes, apelando para a emoção.
Gil Menegoli (@gilmenegoli): Na minha humilde opinião, acho que, se o paciente está em estado terminal ou sujeito a uma quimioterapia que é extremamente agressiva ao corpo humano, por que não tentar, afinal, de um jeito ou de outro o paciente virá a óbito? Digo isso pois perdi um irmão com câncer. A Record mostrou casos em que se mostrou eficiente, mas não ficou explícito se definitivamente, enquanto a Globo simplesmente tentou desacreditar sem nem ao menos ver os casos em que havia melhoras na vida dos pacientes. Acredito que deveria ser melhor avaliada sem a interferência de outros interesses.
Marcela Alvaro: Meus sentimentos pelo seu irmão. Realmente, o fato de o câncer ser uma doença tão delicada, que ainda causa muitas mortes e que tem um tratamento tão difícil, faz desse caso ainda mais complicado. Qualquer alternativa parece válida. A questão de a fosfoetanolamina ser “a última esperança” de pacientes terminais e a luta pelo direito de tentar um tratamento, mesmo que sem eficácia comprovada, apareceu nas três emissoras. Tanto a Globo, quanto a Record e o SBT trouxeram casos de pacientes que demonstraram melhoras na qualidade de vida, algumas vezes com a redução dos tumores. Entretanto, apenas o ‘Conexão Repórter’ (SBT) mostrou como os pacientes entrevistados estavam um ano e meio depois. As explicações do professor Chierice sobre o funcionamento da substância no organismo também foram mostradas por todas as emissoras, mas elas tinham o cuidado de indicar que a substância ainda não tinha passado pelos testes necessários para garantir a sua segurança e eficácia.
Julianne Gouveia (@julianne.gouveia): Em um momento como o de agora, em que existe um certo império da pseudociência alimentado por boatos de redes sociais, como você vê a cobertura de saúde e ciência num geral? Como a TV, especificamente, tem reagido a isso?
Marcela Alvaro: Acho que a cobertura desses temas se faz cada vez mais necessária. Ao apresentar a ciência como algo objetivo, que ajuda a melhorar a nossa qualidade de vida, sem mostrar também os obstáculos, os investimentos necessários, as coisas que podem dar errado e as implicações éticas, acabamos alimentando pensamentos anticientíficos, pois a distanciamos da realidade das pessoas. Hoje, o grande problema é querer legitimar tudo com o discurso de que “a ciência explica” numa era em que qualquer informação é facilmente disseminada. Isso é muito perigoso, e o caso da “fosfo” traz isso à tona. Tivemos um químico distribuindo uma substância feita em laboratório, em uma universidade pública, de forma ilegal. Se, para a comunidade científica, ele perde credibilidade, para os paciente e familiares, isso demonstra que ele lutou contra o sistema, contra interesses econômicos. Vemos a teoria da conspiração da indústria farmacêutica vir à tona. O que observei é que a TV vem tentando balancear os argumentos, trazendo informações científicas mas sem deslegitimar os testemunhos dos pacientes, deixando que o telespectador tire suas próprias conclusões.
(Edição: Julianne Gouveia)
Publicado em 30/8/2019