Ela vive um momento especial de escuta, silêncio e cura. E encontra em sua personagem “a esperança nessa geração que está vindo agora”. Ela é Shirlene Paixão e integra o elenco da nova peça teatral do Museu da Vida. “Cidadela” estreia em 16 de agosto e vai discutir questões de gênero, enfatizando a importância das mulheres na sociedade. Com experiência no teatro e na dança, Shirlene se considera alguém em constante processo de mudança. Mudança: palavra que também define bem a sua personagem - "ela é autêntica, sabe que precisa ir além, romper barreiras”, conta. E contribuir para uma mudança social está entre os objetivos do espetáculo: “esse discurso, nessas bocas, pode realmente mudar pequenos mundos. A gente sabe da nossa responsabilidade com cada visitante do Museu da Vida que entrar nesse teatro durante a temporada”. Confira a entrevista com a atriz que dá vida à jovem Nina de “Cidadela”.
Museu da Vida: Como você descreveria sua trajetória profissional?
Shirlene Paixão: Sou formada em dança pela UFRJ e em teatro pela Escola de Teatro Martins Pena. A minha trajetória começa desde criança, por conta da dança. Mas foi a partir dos 14 anos que a carreira começou a ser construída profissionalmente. Dancei em várias companhias aqui no Rio, depois em algumas companhias de fora. Morei um ano em Israel. Quando voltei para o Brasil, a dança já não era mais a menina dos meus olhos: o teatro foi ganhando esse espaço. A primeira conversa que tive sobre isso foi com a Carmen Luz, diretora da Companhia Étnica, a primeira companhia profissional na qual trabalhei. Ela me perguntou onde eu me imaginava no futuro e eu respondi: no teatro! Aos 16 anos, em uma audição para um filme da Lúcia Murat, do qual nem cheguei a participar de fato, fiz um processo de preparação de atores, de construção de personagens. Fiquei totalmente encantada por essa experiência de poder viver outras vidas que não a minha, de viver essas diferentes personagens que são tão distintas e, ao mesmo tempo, têm traços que se parecem tanto comigo.
Museu da Vida: E onde entra “Cidadela” nessa trajetória?
Shirlene Paixão: Nos últimos dez anos, tenho construído uma trajetória artística que conta com trabalho ininterrupto principalmente no teatro, mas também na tv e no cinema. E “Cidadela” compõe esse caminho, pois carrega simbolicamente o discurso que eu acredito e vivo no meu cotidiano. Terei imenso prazer em ajudar a contar essa história, trazendo para minha boca as palavras de Nina. O encontro com essas mulheres, a direção, a assistência de direção e, principalmente, as atrizes combinam perfeitamente com meu momento artístico e pessoal. Tem sido realmente um momento especial de escuta, silêncio e cura. O mercado é um ambiente muito tóxico e estar aqui, agora, quando a política se mostra um grande caos, encontrar pessoas a fim de dialogar, trocar, ouvir e falar: isso tem sido extremamente importante para eu viver saudavelmente a minha arte e a minha subjetividade como mulher.
Museu da Vida: Quem é a Shirlene?
Shirlene Paixão: Ela tem 31 anos. É uma mulher negra, se entende assim desde sempre. E ela está em constante processo de mudança. Essa é uma pergunta difícil de responder porque sinto que não é algo terminado, que eu possa definir, categorizar, colocar em uma caixa. Ser é o tempo inteiro estar em processo. Esses últimos anos têm sido um processo muito doloroso de desconstrução, mas, ao mesmo tempo, um processo muito feliz de encontro com outras pessoas que, quando atravessam o meu caminho, fomentam dentro de mim a confiança de ser finalmente quem de fato eu sou neste mundo.
Museu da Vida: Por que precisamos falar sobre mulheres negras?
Shirlene Paixão: Estamos atrasados, mas finalmente o tempo chegou. É importante se dar conta de que não se trata de dar voz, mas ouvir as vozes que já existem. O silenciamento, na verdade, não é desse corpo preto, mas dessa escuta, que, na maioria das vezes, é branca. Falar sobre as mulheres negras é falar sobre o útero do mundo, é falar sobre de onde viemos, todos nós, independentemente de gênero e identidade racial. Falar sobre mulheres negras na ciência é dar continuidade a esse processo, é lembrar que vários homens e mulheres negros contribuíram mundialmente para chegarmos aonde estamos hoje em termos de tecnologia, pensando não só na tecnologia ocidental, mas também nos saberes tradicionais, que, muitas vezes, são deslegitimados dentro do pensamento do Ocidente. Essa peça é um serviço para a sociedade. Ela é leve, o que permite atrair mesmo os ouvidos menos atentos a essas questões, e, ao mesmo tempo, ela é extremamente poética e poderosa no seu discurso. Esse discurso acontece em duas camadas, tanto na camada da militância, de quem está lutando por uma mudança, quanto na camada de quem está reproduzindo, mesmo sem saber, certas discriminações. O texto é uma preciosidade. Ele desvela várias camadas da sociedade de um jeito muito real, próximo ao que de fato acontece, embora não seja realista e se passe em um lugar de fábula.
Museu da Vida: O que nos conta sobre sua personagem na peça?
Shirlene Paixão: Nina Garota Filha de Zefa Neta de Honória é um presente. Sei que é meio clichê falar isso, mas o clichê é real. Ela é um presente! A Nina... é tantas de nós! Ela é uma esperança, a esperança nessa geração que está vindo agora, uma geração que ocupa escolas, jovens com um discurso maduro. É difícil interpretá-la, pois ela tem, de alguma forma, exigido um olhar mais atencioso à criança que eu fui. Sempre questionadora e com respostas afiadas, muitas vezes fui colocada como abusada, tal qual a Nina. Sorte a minha ter uma família que alimentou essa chama em mim. Entre militância e política, a subversão apontava a mulher e artista que eu seria hoje. Nina é autêntica, sabe que precisa ir além, romper barreiras, quer entender por que essas regras estão estabelecidas, quem foi que estabeleceu. Ela não se sente contemplada e percebe que as mulheres dessa sociedade também não estão satisfeitas. Ela precisa abrir os olhos delas. A Nina ensina para todas nós diariamente. Ela é essa luz.
Museu da Vida: Como estão sendo os ensaios?
Shirlene Paixão: Parece que estou em casa. Sou de Padre Miguel, filha única, mas, quando estou com minhas tias e primos, é uma conversa que não tem fim; você não sabe muito bem nem qual é o assunto, porque tem três assuntos rodando ao mesmo tempo na mesa no domingo. É assim que eu me sinto na relação com as atrizes. Desde o início criamos um laço de empatia e cuidado. Essas mulheres têm histórias impressionantes! A gente troca experiências de vida, se conhece e se compreende melhor em cena também. Os ensaios têm sido assim, esse lugar familiar e muito saudável.
Museu da Vida: Qual palavra resumiria essa experiência?
Shirlene Paixão: Cuidado. É uma equipe que sabe que esse discurso, nessas bocas, pode realmente mudar pequenos mundos. A gente sabe da nossa responsabilidade com cada visitante do Museu da Vida que entrar nesse teatro durante a temporada. E nós queremos assumir essa responsabilidade, estamos afetivamente envolvidos com o projeto, com olhos brilhantes e vibrantes. Toda a equipe está ligada por esse afeto.
Publicado em 15/08/2019.