Pesquisadora da Ensp explica por que a opinião de Xuxa Meneghel fere os direitos de seres humanos em presídios.
Por Melissa Cannabrava e Renata Fontanetto
"Na minha opinião, eu acho que existem muitas pessoas que fizeram muitas coisas erradas que estão aí pagando seus erros em ad eternum, para sempre em prisão, que poderiam ajudar nesses casos aí, de pessoas para experimentos", comentou a apresentadora Maria da Graça Xuxa Meneghel, a Xuxa, de 58 anos, durante uma live realizada no fim de março pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). E completou: "Acho que pelo menos eles serviriam para alguma coisa antes de morrer". O apresentador pareceu concordar, reforçando o argumento de Xuxa. Horas depois do ocorrido, ela veio à público pedir desculpas.
A opinião racista dita em entrevista, que tinha como tema a defesa dos direitos dos animais, desencadeou comentários e réplicas que trouxeram à tona a importância do debate sobre direitos humanos de presas e presos brasileiros e também do racismo científico.
Em um momento em que o mundo ainda está vulnerável devido à Covid-19, que já levou a vida de mais de 390 mil pessoas no Brasil, a sugestão de que presos sejam usados como cobaias de testes para vacinas revela o pensamento desumano em relação à população carcerária. Levando em consideração que 66,31% da população encarcerada no Brasil é negra, a opinião de Xuxa pode sustentar uma visão racista e eugenista dentro da sociedade.
Atualmente, o país ocupa a terceira posição mundial em número absoluto de presos - com um déficit de mais de 231 mil vagas. A Agenda Nacional pelo Desencarceramento colheu, em menos de 30 horas, 502 assinaturas na carta de repúdio à fala da apresentadora. A carta lembra que o sistema de justiça opera de forma seletiva, tendo o racismo como estruturante de suas determinações, que termina por encarcerar, majoritariamente, pessoas pobres, negras, indígenas e de situação em vulnerabilidade social. Para Roberta Lemos, doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), esse raciocínio configura um pensamento eugenista:
"O pensamento eugenista tem como pano de fundo o direito de escolher quem vive e quem morre, uma separação entre os diferentes, algo como uma hierarquia biológica. Ou seja, o mais fraco, mais pobre, a pessoa com deficiência, o preto, o mais vulnerável, em geral, são considerados ‘matáveis’ e podem, então, morrer em troca da manutenção desta hierarquia biológica. Desses pensamentos surgem frases que muitas vezes já ouvimos, como: ‘Bandido bom é bandido morto’ ou ‘Pobre não tem que procriar’ ou ‘Pobre tem que morrer’ e por aí vai. A morte se transforma em um objeto de gestão e de permanência no poder de um grupo que se julga, de alguma forma, superior a outros grupos", explica.
A pesquisadora observa que as condições que se apresentam no sistema prisional - superlotação, predisposição a doenças infectocontagiosas, dificuldade de acesso à saúde, entre outras - se somam à raça, situação econômica, gênero e isso pode potencializar a situação de vulnerabilidade em que uma pessoa se encontra dentro da cadeia.
Afinal, o que é racismo científico?
Há raízes históricas no pensamento que estrutura o racismo científico. A ideia de que alguns seres humanos são mais evoluídos e possuem maior intelecto que outros está presente nos escritos sobre evolução de Charles Darwin, por exemplo. Além disso, são amplamente documentadas as torturas que os médicos nazistas praticavam contra judeus, negros, ciganos, pessoas com deficiência e outros povos durante a Segunda Guerra Mundial (II GM), tendo como fundamento a noção de supremacia racial branca.
Muitos homens celebrados por suas realizações médicas submeteram outros seres humanos a situações desumanas e degradantes. Alguns deles têm estátuas em homenagem, como há pouco tempo tinha o médico ginecologista J. Marion Sims. Após uma série de protestos em 2018, sua estátua no Central Park, em Nova York, foi retirada. Sims é considerado o “pai da ginecologia moderna” e tem sua história marcada pela escravização de mulheres negras, que se tornavam suas cobaias humanas. No lugar da estátua, foram instaladas placas explicativas em homenagem às vítimas.
A ética em pesquisa evoluiu e se aprimorou após a II GM, trazendo o olhar dos direitos humanos e do bem-estar do participante da pesquisa para o centro do debate. Hoje em dia, toda e qualquer pesquisa precisa ser detalhadamente explicada ao participante, que tem o direito de sair do estudo a qualquer momento e deve ter direitos e segurança assegurados.
"A diretriz brasileira que conduz a ética em pesquisa com seres humanos em vigor no Brasil é a Resolução nº 466 de 2012, quando falamos de pesquisas clínicas. Esta resolução tem como base diversos documentos importantes que garantem a dignidade, liberdade e autonomia do ser humano, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que é clara quando diz que todo ser humano tem direitos básicos que devem ser respeitados incondicionalmente. Há, também, a Resolução nº 510 de 2016, quando falamos de pesquisas nas ciências humanas e sociais. Ambas se amparam em princípios éticos e bioéticos e tem o objetivo maior de proteção aos participantes de pesquisa", detalha Lemos.
Tornar evidente o racismo estrutural impregnado em práticas humanas, como a própria ciência, é um dos caminhos para mirar em ações e mudanças. Segundo a pesquisadora, há muitos estudos surgindo no campo da bioética com o olhar da interseccionalidade. "Uma mirada cada vez mais antirracista, decolonial, antipatriarcal e feminista, reforçando o olhar crítico da bioética, que é via importante de combate ao racismo e outras injustiças, e também buscando políticas para a garantia de plena igualdade num contexto tão plural em que estamos inseridos."
Publicado em 27 de abril de 2021